O INFANTE
Deus quere, o homem
sonha, a obra nasce.
Deus quiz que a terra
fosse toda uma,
Que o mar unisse, já
não separasse.
Sagrou-te, e foste
desvendando a espuma,
E a orla branca foi de
ilha em continente,
Clareou, correndo, até
ao fim do mundo,
E viu-se a terra
inteira, de repente,
Surgir, redonda, do
azul profundo.
Quem te sagrou
creou-te portuguez.
Do mar e nós em ti nos
deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o
Império se desfez.
Senhor, falta
cumprir-se Portugal!
Análise:"Foste desvendando a espuma
e a orla branca foi de ilha em continente..."- a espuma das ondas que acabam nas
praias ou rebentam contra os rochedos marca as costas com uma orla branca. A
frase anterior é uma forma poética de dizer que as costas foram sendo
descobertas, primeiro as ilhas e depois os continentes, "até ao fim do
mundo".
"Quem te sagrou criou-te
português"- porque, segundo Fernando Pessoa, Deus fadou Portugal para um magno
destino e o Infante foi, por assim dizer, parte do "puzzle".
"Do mar e nós, em ti nos
deu sinal"- através de ti revelou-nos que o nosso destino era o Mar.
"Cumpriu-se o Mar e o
Império se desfez...falta cumprir-se Portugal"- cumpriu-se o destinado: o Mar
foi desvendado; o Império Português (isto é, o controle das rotas oceânicas e a
hegemonia no Índico) desfez-se. Pessoa pensa que Portugal está destinado à
grandeza futura, e isso ainda não se cumpriu!
O MOSTRENGO
O mostrengo que está
no fim do mar
Na noite de breu
ergueu-se a voar;
À roda da nau voou
trez vezes,
Voou trez vezes a
chiar,
E disse: «Quem é que
ousou entrar
Nas minhas cavernas
que não desvendo,
Meus tectos negros do
fim do mundo?»
E o homem do leme
disse, tremendo:
«El-rei D. João
Segundo!»
«De quem são as velas
onde me roço?
De quem as quilhas que
vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e
rodou trez vezes,
Trez vezes rodou
immundo e grosso.
«Quem vem poder o que
só eu posso,
Que moro onde nunca
ninguém me visse
E escorro os medos do
mar sem fundo?»
o homem do leme
tremeu, e disse:
«El-rei D. João
Segundo!»
Trez vezes do leme as
mãos ergueu,
Trez vezes ao leme as
reprendeu,
E disse no fim de
tremer trez vezes:
«Aqui ao leme sou mais
do que eu:
Sou um povo que quere
o mar que é teu;
E mais que o
mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do
fim do mundo,
Manda a vontade, que
me ata ao leme,
D' El-rei D. João
Segundo!»
Análise:Este é um dos poemas mais
conhecidos de Mensagem. Aquando das suas duas primeiras publicações chamava-se
"O Morcego" e referia "o morcego que está no fim do mar..." mas o ser simbólico
foi dignificado pela transformação em mostrengo na revisão anterior à edição de
Mensagem em livro.
O poema simboliza, claro
está, o medo do desconhecido (o "mostrengo") que os navegadores portugueses
tiveram que vencer. A causa próxima dessa coragem é, segundo Fernando Pessoa, as
ordens do rei D.João II. Existe uma razão para isso: quando Gil Eanes voltou de
uma tentativa falhada de dobrar o Cabo Bojador, o Infante mandou-o voltar para
tentar novamente e o navegador venceu o temor para não desagradar ao seu bondoso
patrono. Mas com D.João II o trato era diferente porque ele era o tipo de homem
que não admitia que aqueles em quem confiara falhassem- os comandantes preferiam
enfrentar todos os dragões do mar à fúria do seu senhor e por isso o poema
encerra também uma ironia- a natureza da "vontade" que ata o homem do leme à
rota é que o temor do seu rei é maior do que o terror do mar ignoto!