A ACÇÃO
A acção é constituída por sequências narrativas (acontecimentos)
provocadas ouexperimentadas pelas personagens, que se situam num espaço e
decorrem num tempo, maisou menos, extenso. A acção é fechada quando se conhece o
desenlace da história, ou seja, ofinal é revelado; e é aberta sempre que se
verifica o contrário, normalmente, incitando àreflexão sobre a mesma.
Acção principal
Consiste nas sequências
narrativas com maior relevância dentro da história e que, porisso, detêm um
tratamento privilegiado no universo narrativo. Em Memorial do Convento de José
Saramago:
A edificação do convento de Mafra – desejo e promessa de D. João
V.
Acção secundária
A sua importância depende da
acção principal, em relação à qual possui menor relevância.
Em Memorial do
Conventode José Saramago:
A construção da «máquina voadora» – sonho do padre
Bartolomeu Lourenço de Gusmão;bem como a história de amor entre Blimunda
Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis.
Narrador
Tratando-se de uma obra
ficcional, esta encontra-se fora do tempo e do espaço. E o anacronismo do
discurso do narrador permite-lhe revisitar o passado e recuperar vidas que a
História esqueceu.
A atitude narratológica assumida no romance coloca
dificuldades de classificação, principalmente porque a instância narrativa não é
una, subdividindo-se em outras de menor importância, manipuladas pelo narrador
principal.
O narrador revela-se quase sempre omnisciente e assume a
posição heterodiegética; mas este estatuto não serve as intenções do autor. Por
isso este vai servir-se de outros processos ligados à narração, chegando a criar
instruções discursivas para os seus comentários, ironias e divagações;
empréstimos do estatuto de narrador a outras personagens da história.
A
riqueza e versatilidade deste(s) narrador(es) passam pela adopção de estratégias
que visam:
a) representar-se como narrador-orador capaz de simular um
imediatismo no acto de narrar e dando lugar a dialogismos mais ou menos
configurados nodiscurso;
b) captar a atenção do narratário – convocado
para o discurso, tanto por uma pluralidade ambígua (nós) como por um indefinido
(“Veja-se”) – que se pretende participante no acto de contar;
c) gerir a
informação a contar, relevando a ficção face à história, o plano humano face ao
da realeza (a omnisciência implica, também, selecção e interpretação);
d)
reflectir sobre o narrado e simular o processo de narração homologicamente ao
processo de reflexão escrita;
e) solicitar um leitor activo no processo
de leitura da obra.
A atitude do narrador principal para com o narrado é
aparentemente contraditória: por um lado, temos uma tentativa de aproximação à
época retratada, ao reconstituir a cor local e epocal, mas, por outro, dá-se uma
enorme distanciação, visível nas inúmeras prolepses e na ironia sarcástica
utilizada para atacar alguns aspectos da História, fundamentalmente os que se
ligam às personagens socialmente favorecidas.
O narrador distancia-se do
narrado pelas referências irónicas, mas também por um processo de afastamento
temporal que o obriga a adaptar a linguagem e a distinguir entre um vocabulário
respeitante à época histórica retratada e outro que se reporta à
actual.
A actualização de vocabulário é visível quando descreve a pedra
do pórtico da igreja, cujas medidas e peso nos são dados primeiro em pés, palmos
e arrobas, para depois falar em metros e quilos.
Temporalmente, mais
afastados estão os momentos em que o narrador simula actuais visitas guiadas ao
convento de Mafra.
Tempo
Tempo histórico (época ou período da História em
que se desenrolam as sequências narrativas):
A acção passa-se no início do século XVIII (1711 – 1739).
1711 – 1739. Ao longo do romance, as referências temporais são escassas e,
muitas vezes, deduzidas. O crescimento e/ou envelhecimento das personagens
também nos dá conta da passagem do tempo.
· Chegou há mais de dois anos da
Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje (I) – deduz-se que a
acção tem início em 1711, pois o casamento real aconteceu dois anos antes, em
1709;
· Apenas há seis anos aconteceu, em 1705(II) – confirma 1711 focado
anteriormente.
Tempo do
discurso (modo como o narrador conta os acontecimentos, podendo elaborar
o seu discurso segundo uma frequência, ordem e ritmo temporais
diferentes):
Frequência temporal:
· Discurso singulativo – o
narrador conta apenas uma vez o que aconteceu uma só vez.
· Discurso
repetitivo – o narrador conta várias vezes o que aconteceu apenas uma vez.
·
Discurso iterativo – o narrador conta uma vez o que aconteceu várias
vezes
Ordem temporal:
· O narrador conta no presente
acontecimentos já passados – analepseà anisocronia temporal;
· O narrador
antecipa acontecimentos futuros – prolepse à anisocronia temporal;
· O
narrador segue uma ordem cronológica dos eventos – ordem linear à isocronia
temporal.
Ritmo temporal:
· O tempo da diegese pode ser
maior do que o do discurso – anisocronia temporal (o narrador omite (elipse) ou
sumaria o que aconteceu em determinado período temporal);
· O tempo da
diegese pode ser menor do que o do discurso – anisocronia temporal (o narrador
procede a descrições, divagações, reflexões, pausas narrativas);
· O tempo da
diegese pode ser idêntico ao do discurso – isocronia temporal (exemplo:
diálogos).
Espaço
Evocação de dois espaços
principais determinantes no desenrolar da acção: Mafra e Lisboa.
Mafra:
passa da vila velha e do antigo castelo nas proximidades da Igreja de Santo
André para a vila nova em cujas imediações se vai construir o convento. A vila
nova cria-se justamente por causa da construção do convento.
Lisboa:
descrevem-se vários espaços dos quais se destacam o Terreiro do Paço, o Rossio e
S. Sebastião da Pedreira.
Portugal beneficiava da riqueza proveniente do
ouro do Brasil. D. João V em decreto de 26 de Novembro de 1711 autorizou que se
fundasse, na vila de Mafra, um convento dedicado a Santo António e pertencente à
Província dos Capuchos Arrábidos.
Ludwig, arquitecto alemão, estava em
Lisboa, em 1700, contratado como decorador-ourives, pelos Jesuítas. Foi a ele
que entregaram o projecto do Mosteiro, destinado a albergar 300 frades. A traça
do edifício terá sido executada por volta de 1714-1715 ao passo que a igreja,
avançada ate ao zimbório, foi sagrada em 1730. Outras dependências foram
construídas para além da igreja: portaria, refeitório, enfermaria, cozinha,
claustros, biblioteca.
Terreiro do Paço: local onde primeiramente
trabalha Baltasar na sua chegada a Lisboa, descrição pormenorizada e sugestiva
da procissão do Corpo de Deus, em Junho. É um espaço fulgurante de vida, com
grande importância no contexto da sociedade lisboeta da época.
Rossio:
surge no início da obra, relacionado com o auto-de-fé que aí se realiza. A
reconstituição do auto-de-fé é fidedigna, a cerimónia tinha por base as
sentenças proferidas pelo Tribunal do Santo Ofício e nela figuravam não só
reconciliados, mas também relaxados, aqueles que eram entregues à justiça
secular para a execução da pena de morte. O dia da publicação do auto era
festivo, segundo se pode constatar das defesas efectuadas. A procissão
propriamente dita saía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria a
cidade de Lisboa antes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das
praças centrais. À frente seguiam os frades de S. Domingos com o pendão da
Inquisição. Atrás destes os penitentes por ordem de gravidade das culpas, cada
um ladeado por dois guardas. Depois, os condenados à morte, acompanhados por
frades, seguidos das estátuas dos que iam ser queimados em efígie. Finalmente os
altos dignitários da Inquisição, precedendo o Inquisidor-Geral. A sorte dos réus
vinha estampada nos sambenitos (hábito em forma de saco, de baeta amarela e
vermelha que se vestia aos penitentes dos autos-de-fé) para que a compacta
multidão que se aglomerava soubesse o destino dos condenados.
S.
Sebastião da Pedreira: local mágico ao qual só acedem o padre, Bartolomeu
Lourenço, o Voador, Baltasar e Blimunda. É lá que se encontra a máquina voadora
que está a ser construída em simultâneo com o Convento de Mafra. A passarola
insere-se na narrativa como um mito, do qual o homem depende para viver, mito
proibido mas que se evidenciará e se deixará ver pelo voo espectacular que se
realizará, mostrando que ao homem nada é impossível e que a vida é uma grande
aventura. S. Sebastião da Pedreira era, àquele tempo, um espaço rural, onde não
faltavam fontes, terras de olival, burros, noras, e onde se situava a quinta
abandonada. Ali irão as personagens, variadíssimas vezes e pelas razões mais
diversas.
Personagens
D. João V: proclamado rei a
1 de Janeiro de 1707, casou, no ano seguinte, com a princesa Maria Ana de
Aústria e vive um dos mais longos reinados da nossa história. Surge na obra só
pela sua promessa de erguer um convento se tivesse um filho varão do seu
casamento. O casal real cumpre, no início da obra, com artificialismo, os
rituais de acasalamento. O autor escreverá o memorial para resgatar o papel dos
oprimidos que o construíram. Rei e rainha são representantes do poder, da ordem
e da repressão absolutista.
Baltasar e Blimunda: são o casal que,
simbolicamente, guardará os segredos dos infelizes, dos humilhados, dos
condenados, enfim, dos oprimidos. Conhecem-se durante um auto-de-fé, levado a
cabo pela Inquisição, o de 26 de Julho de 1711 e não mais deixam de se amar.
Vivem um amor sem regras, natural e instintivo, entregando-se a jogos eróticos.
A plenitude do amor é sentida no momento em que se amam e a procriação não é
sonho que os atormente como sucede com os reis.
Blimunda: com poderes que
a tornavam conhecedora dos outros nos seus bens e nos seus males, recusando-se,
no entanto, a olhar Baltasar por dentro. Vai ser ela quem, com Baltasar,
guardará a passarola quando o padre Bartolomeu vai para Espanha onde, afinal,
acabará por morrer. Ela e Baltasar sentir-se-ão obrigados a guardá-la como sua,
quando, após uma aventura voadora, conseguira aterrar na serra do Barregudo, não
longe de Monte Junto, perdido o rasto do padre que desaparecera como fumo.
Quando voltaram a Mafra, dois dias depois, todos achavam que tinha voado sobre
as obras da basílica o Espírito Santo e fizeram uma procissão de agradecimento.
Começaram a voltar ao local onde a passarola dormia para cuidar dela,
remendá-la, compô-la e limpá-la.
Um dia Baltasar foi verificar os efeitos
do tempo na passarola mas Blimunda não o acompanhou e ele não voltou. Procurou-o
durante 9 anos, infeliz de saudade, na sua sétima passagem por Lisboa
encontrou-o entre os supliciados da Inquisição, a arder numa das fogueiras,
disse-lhe "Vem" e a vontade dele não subiu para as estrelas pois pertencia à
terra e a Blimunda.
Povo: todos os anónimos que construíram a História
são representados através daqueles a quem o autor dá nome: Alcino, Brás,
Nicanor, etc.
Padre Bartolomeu de Gusmão: tem por alcunha O Voador, gosto
pelas viagens, estrangeirado, a ciência era, para ele, a preocupação
verdadeiramente nobre. O rei mostra-se muito empenhado no progresso do seu
invento. A populaça troça dele, Baltasar e Blimunda serão ouvintes atentos das
suas histórias e sermões. A amizade destes dois seres, simples, enigmáticos, mas
verdadeiros protagonistas do Memorial, é tão valiosa para o padre como
necessária à representatividade da obra como símbolo de solidariedade e beleza
em dicotomia com egoísmo e poder.
Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu
Lourenço formam um trio que vai pôr em prática o sonho de voar. Assim, o
trabalho físico e artesanal, de Baltasar, liga-se à capacidade mágica de
Blimunda e aos conhecimentos científicos do padre. Todos partilham do entusiasmo
na construção da passarola, aos quais se junta um quarto elemento, o músico
Domenico Scarlatti, que passa a tocar enquanto os outros trabalham. O saber
artístico junta-se aos outros saberes e todos corporizam o sonho de
voar.
Scarlatti: veio como professor do irmão de D. João V, o infante D.
António, passando depois a ser professor da infanta D. Maria Bárbara. Exerceu as
funções de mestre-de-capela e professor da casa real de 1720 a 1729, tendo
escrito inúmeras peças musicais durante esse tempo. No contexto do romance, para
além do seu contributo na construção da passarola é determinante na cura da
doença de Blimunda; durante uma semana tocou cravo para ela, até ela ter forças
para se levantar.